23 de outubro de 2023
Amizade social
Pe. Miguel Ramon
A fé cristã não é somente algo pessoal e individual. Ela tem implicações sociais. Ela interfere nas relações com as outras pessoas e aponta para responsabilidades no cuidado com a Casa Comum em que todos habitamos. Pode ser que em circunstâncias excepcionais não há como sair muito da própria intimidade, mas mesmo assim ela tende a influenciar o ambiente em que é vivenciada.
Na história da vida do Cardeal vietnamita François-Xavier Van Thuan (1928-2002) podemos ler que ele, durante o duro regime comunista no seu país, na prisão, impedido de celebrar a missa, ele o fazia clandestinamente, com um pedaço de pão, três gotas de vinho e uma gota d'água na palma da mão. Ele conseguiu convencer seus carcereiros a darem-lhe um pouco de vinho como remédio para aliviar sua tosse em consequência das más condições da sua cela úmida e sem janelas que dificultava muito sua respiração. Seu exemplo de vida fez com que as autoridades fossem obrigadas a sempre mudar os carcereiros que se deixaram “contaminar” por ele. Até o ajudaram indiretamente ao fechar os olhos quando fez uma cruz com pedaços de madeira e depois uma corrente com um pedaço de fio elétrico da prisão. Podem, de fato existir restrições impostas por governos e regimes que proíbem e perseguem a profissão da fé em ambiente público. Contudo, mesmo nestas circunstâncias é difícil eliminar por completo a força do testemunho.
O sangue dos mártires dos primeiros séculos da era cristã é outro exemplo significativo de como a fé, mesmo perseguida, se torne semente para fazer brotar novos cristãos com forte impacto na sociedade em que vivem.
Em países da antiga cristandade na Europa há uma tendência a querer banir a fé da vida pública e de restringi-la a atividades dentro dos muros da igreja e a uma opção exclusivamente pessoal na intimidade da vida. Mas é obvio que não se pode reduzir a vivência da fé à sacristia. Ela sempre apela para responsabilidade social e política. Ela convida a superar e sair do individualismo para assumir não apenas caridade interpessoal, diretamente de pessoa para pessoa, oferecendo assistência imediata em situações de vulnerabilidade, como distribuição de sopas e alimento para acabar com a fome, mas vai além em busca de soluções mais estruturais, duradouras e eficazes que possam eliminar de forma mais abrangente o problema.
A caridade adquire assim uma dimensão social e política. A amizade interpessoal, infelizmente muitas vezes ainda ausente em ações de caridade emergencial que não chega a demonstrar proximidade ao beneficiário da benevolência, adquire desta forma uma dimensão social. Estamos longe ainda desta percepção que é necessário vivenciar a fé unida a uma caridade social e política que possa contribuir para um reordenamento da sociedade com vida digna para todos e a preservação da Natureza para as atuais e futuras gerações. A tendência atual da religiosidade é justamente o oposto, visando quase que exclusivamente alívio para anseios e problemas pessoais, deixando o fiel preso em seu próprio “ego”. Deus toca no coração e oferece um bem-estar temporário para o individuo que se sente atingido. Raras vezes a pessoa assim beneficiada chega a se tornar um agente de transformação social. Louva e agradece a Deus, mas não olha para o filho e filha de Deus ao seu lado.