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07 de Agosto de 2023

Salvar almas?

Pe. Miguel Ramon

Por muito tempo, sob forte influência da filosofia grega, foi cultivada a ideia de que Jesus veio ao mundo para salvar almas. Nesta perspectiva a missão da Igreja não podia ser outra a não ser “salvar almas”. Por isso que os missionários se apressaram em batizar o maior número possível de ‘pagãos’ para salvá-los do fogo eterno do inferno. A separação entre corpo e alma era tão forte que servia para justificar torturas cruéis, fogueiras e mortes de milhares de inocentes. Tudo era para salvar almas. Podia-se perder o corpo, mas a alma ficaria salva. É no mesmo embalo que foram escravizados e eliminados povos africanos e indígenas. A visão que se tinha naquela época da profunda divisão entre corpo e alma levou a tratamentos abomináveis destas populações. Por mais detestáveis que pareçam hoje aos nossos olhos, há quem ainda tente justificar estes horrores, atribuindo as atrocidades a esta concepção errônea do ser humano. A intenção por trás de tudo isso era “boa”: a salvação da alma para a felicidade eterna junto de Deus.

O que pode surpreender mais é que hoje ainda tem um número considerável de pessoas que propagam uma fé baseada nesta crença da salvação da alma. Em várias igrejas há pregadores que continuam divulgando uma interpretação equivocada da salvação, separando-a da realidade corporal e existencial da vida humana. Insistem em desconsiderar o contexto sociopolítico em que a pessoa vive. A salvação é para a “alma” depois da morte. O que seria esta alma separada do corpo?

No final da oração do Credo, formulado já nos primeiros séculos, combatendo uma interpretação demasiamente ‘espiritualizada’ da salvação, os cristãos professam sua fé na ressurreição da carne. Afirmam assim que toda pessoa, incluindo sua constituição carnal, é destinada à salvação e à vida em plenitude junto de Deus, além das fronteiras da morte. Entendem que não é possível crer em Deus Criador, no seu filho Jesus e no Espírito Santo, sem considerar que os três sempre agiram na história de homens e mulheres de carne e osso, assumindo no próprio filho carne humana. ‘’[...]porque um espírito não tem carne nem ossos, como percebes que eu tenho” disse Jesus ao aparecer aos discípulos depois da ressurreição. (Cf. Lc 24, 39)

Em nenhum momento da sua vida na terra, Jesus manifesta interesse na ‘alma’, mas sim na vida concreta das pessoas que encontrava, especialmente com as que tinham sua vida machucada e eram excluídas do convívio social. A preocupação de Jesus não era a salvação de almas isoladas, mas sim de toda a humanidade, promovendo a integração de todos os homens e mulheres na grande família de Deus. Nela não deve mais existir rejeição e exclusão. A grande missão de Jesus é restaurar a dignidade da vida tal qual criada e desejada pelo seu Pai. Jesus veio para trazer de volta a alegria e a felicidade de viver como filhos e filhas de Deus, irmanados uns com os outros no Amor. Nas palavras e nas ações de Jesus, a proximidade do amor misericordioso já pode ser experimentada concretamente aqui e agora. É nisso que se baseia a esperança que este amor permanecerá na eternidade. Abraçando as pessoas na sua vida cotidiana, Jesus garante a elas que as levará para sempre junto do seu Pai amoroso. (Cf. Jo 14, 3)

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