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18 de fevereiro de 2022

Um Deus humano demais?

Pe. Miguel Ramon

Na mitologia grega e romana existia uma multidão de deuses que interferiam em diversos fenômenos da natureza e da vida humana. A eles são associados, entre outros, os ventos, os relâmpagos, os trovões e as tempestades. São responsáveis pela colheita, pela caça, pela paz e pela guerra. Eles determinam também as atitudes e comportamentos das pessoas. A eles são atribuídos enormes poderes que influenciam a vida das pessoas, mesmo sem elas quererem. São tidos como responsáveis pelo sucesso e pelo fracasso. Por isso é importante ter um bom relacionamento com eles, prestando culto e oferecendo sacrifícios. Sempre podem ser invocados para ter uma vida de felicidade e êxito.

Estes deuses e deusas são apresentados como seres humanos e possuem características dos mortais como inveja, infidelidade, concupiscência, luxuria, sede de vingança. Entre eles e elas há constantes brigas, intrigas e paixões. Os habitantes de Atenas tinham tanto medo de esquecer algum deus que erguerem até um altar para um deus desconhecido. O Apóstolo Paulo se refere a esta multidão de deuses quando fala no Areópago, inclusive apresentando Jesus como o deus desconhecido que eles adoraram. (Cf. Atos 17)

Esta apresentação demasiamente humana dos deuses não resistiu diante da evolução do pensamento mais crítica dos filósofos gregos que questionavam sempre mais esta percepção da intervenção divina e suas narrativas mitológicas.

Nem a humanidade nem a divindade de Jesus se enquadram neste Panteão greco-romano. Nem tampouco é um filho de Deus com atributos como os dos imperadores romanos, que se apresentaram como deuses a quem se devia prestar culto, com total submissão e obediência irrestrita.

Jesus é divino no esvaziamento total da sua divindade, tornando-se totalmente humano exceto no pecado. É o insondável mistério da encarnação. Na carta aos Filipenses Paulo escreve: (Jesus), sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens (Filipenses 2:6,7). Evidentemente que não se trata de um puro formalismo. Em Jesus, andando pelas terras da Palestina, se revela ao mesmo tempo a essência da divindade que é puro amor, ternura, proximidade e compaixão.

A humanização do divino e a divinização do humano ainda são pouco percebidos por grande número de cristãos. Há uma constante tentação de fugir do humano para esferas consideradas “divinas”. A salvação parece vir de espaços muito além das alturas do Olimpo. Uma religiosidade “mítica” e “milagreira” deve curar os anseios dos corações inquietos e perturbados. Não se percebe que a fé opera uma transformação profunda e permanente na pessoa, na maneira de viver e agir no seguimento do caminho proposto por Jesus. Ter fé e aderir a um projeto de vida que orienta o próprio ser, os relacionamentos com os outros, com a natureza, com o mundo e com a Fonte da Vida, Deus.

A fé num Deus feito homem, que caminha junto, no meio do seu povo e não acima dele, formando corpo nos membros em que habita (Cf. vós sois o corpo de Cristo 1Cor 12,27), muitas vezes parece humano demais. Além disso, pode ser mais tranquilizante colocá-lo nos altos céus e esperar dele a solução para as dificuldades e desafios da vida, em vez de assumir as próprias responsabilidades.

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